sábado, 3 de junho de 2017

Somos Todos Criancinhas


Lendo dentre as homenagens a Antonio Cândido um trecho de uma entrevista concedida por ele em que responde afirmativamente à pergunta: “O senhor é socialista?”, e segue falando das conquistas do socialismo das quais todos gozamos sem reconhecer, vou legitimando uma sensação antiga verbalizada em uma frase simplista: somos todos criancinhas!

A criança tem dificuldade de se entender como parte de um processo histórico. É egocêntrica e acha que tudo diz respeito a ela. Por isso mesmo não percebe que todas as regras a que precisa se submeter para o convívio social são decorrentes de uma trajetória cultural assim como todos os direitos comportamentais que têm são também o fim de uma linha histórica.

Lembrei-me de um grupo específico de alunos do fundamental I, de uma escola particular em que ministrei aulas de teatro. Eles tinham um comportamento totalmente adestrado pelas regras da escola. Ao mesmo tempo em que, subversivos como a idade manda, tentavam burlar aquelas regras que enxergavam como algo natural, já que EU nunca tinha imposto nada a eles. Aos poucos eu comecei a dizer que não precisavam levantar a mão pra falar e nem pedir pra ir ao banheiro ou beber água. Afirmei que não iria gritar com eles pra que ficassem quietos e que não ia usar de nenhum recurso de poder pra tentar falar. Também informei que não ia proibir celulares. Eles mal podiam acreditar. Nossos encontros eram assim: os alunos passavam a maior parte do tempo no celular, falavam todos ao mesmo tempo em altíssimo volume e saíam da sala constantemente. E eles mal podiam acreditar na liberdade que tinham, ficavam deslumbrados com o caos descontrolado e autorizado por um adulto que costumava ser a figura de poder e controle.
Aos poucos, foram ficando exaustos... lembro-me perfeitamente do dia em que uma das alunas me pediu, literalmente, para que desse um grito e resolvesse aquela bagunça!

Eles pediram o autoritarismo! Não estavam prontos para a liberdade. Confesso que, a partir de então, passei a me utilizar de alguns dos elementos de poder que me eram autorizados pela função que exercia. Até porque também eu não estava pronta para essa liberdade toda. Não sabia mais o que fazer com aquele caos e sentia que não demoraria muito pra instituição me espirrar dali por justa causa! Foi um alívio aquele pedido da minha aluna. Eles é quem estavam pedindo que eu respeitasse a regra pré-estabelecida. Não estavam dispostos a criarem as próprias regras! E eu podia me respaldar naquele pedido pra agir do jeito conhecido e eficaz para manter a ordem e produzir!!!

A experiência foi curta, mas muito rica. Imagino que pra eles também. Mas pra mim com certeza! Muitas coisas que me passaram depois dessa vivência e muitas coisas que vi acontecerem, para além da minha esfera pessoal, puderam ser lidas pelos óculos que adquiri depois desse episódio! Não estamos prontos para a liberdade. Vemos tudo o que existe como algo natural, sejam as coisas que nos oprimem sejam as que nos libertam, pois não queremos assumir a responsabilidade de conquistar o que desejamos; e por isso não podemos nos dar ao luxo de reconhecer as conquistas que vieram da organização e da luta consciente dos nossos iguais - dos poucos que assumiram sua responsabilidade sobre o mundo e sobre os processos históricos. A maioria de nós continua confortavelmente presa às religiões e seus deuses inacessíveis que nos impõem tudo o que vivemos. Não estamos prontos para a luta e para a liberdade que pode decorrer dela! Delegamos felizes a nossa liberdade para uns poucos que nos oprimem e exploram e, como pagamento nos dão o que bem entendem e nós agradecemos aliviados.  

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Por uma educação libertária

“Ela é ótima professora. É tipo linha-dura! Muito rigorosa e exigente!”

“Professora, pode brigar com ele sim! Se deixar ele só faz o que quer!”

“Uniforme é lei, o meu filho, se pudesse, eu mandava de farda!”

“Escola não é lugar de brincar!”

“Minha mãe me tirou do teatro, professora, porque minhas notas estão baixas!”

“Isso é uma reunião ou um bate-boca!? Vamos deixar a professora terminar de ler o papel logo porque eu tenho que voltar pro serviço!”

“Não tinha ninguém lá e eu mandei ela trancar o portão com o cadeado. Eu estou aqui há 10 anos! Não vou lhe responder o motivo do cadeado, faça a solicitação por escrito!”

Essas são algumas das frases que me vêm à cabeça, sem fazer muito esforço de memória, que já ouvi no contexto escolar desde que frequento reuniões de pais, como mãe, e instituições de ensino como professora de teatro (“Não vale nota!”).

Tenho acumulado angústias que, na última reunião de pais em que estive, explodiram num insight apavorante: queremos que nossos filhos/alunos sofram!!!!

Muitas vezes o desejo é explícito, muito nobremente mascarado de preocupação com o futuro do pequeno... “Tem que sofrer pra aprender!”. Mas quase sempre fica (mal) camuflado por um ódio contido daquela infância livre e cheia de desejos e potencial que nos humilha com a sua exibição libertina, alheia às regras e dogmas que nos forjaram com doloroso cerceamento.

Não é de hoje que me ficou evidente a semelhança entre o sistema educacional e a disciplina militar. Achava que era uma sequela da ditadura, ainda tão recente em nossa história. Porém, percebo agora que o motivo maior dessa obsessão pela disciplina e pela ordem está mais associada a uma espécie de vingança que nós, adultos, queremos empreender sobre as nossas crianças.

E assim me ocorre uma frase de um sábio senhor que, infelizmente, nunca escutei em âmbitos escolares, mas que venho repetindo nos mais diversos contextos: “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar o opressor!”. É disso que se trata! Aceitamos tudo o que nos é imposto, tudo o que nos é tirado! Aceitamos comer quando nos mandam, chorar quando nos deixam, vestir essa ou aquela roupa. Aceitamos parar de correr, parar de gritar, parar de querer! Aceitamos ficar sentados, ficar na fila, ficar quietos. Fazemos a lição até terminar a apostila, mantemos o uniforme limpo como deve ser!, comemos a merenda toda para ganhar uma bolinha de açúcar e corante como recompensa por rasparmos o prato.

(Ah! Essas pequenas droguinhas que ganhamos ao longo do nosso desenvolvimento, que bênção são o açúcar e a internet com seus desenhos e jogos viciantes! O pão e o circo da criançada de hoje! E eles ficam quietos e não nos atormentam nas poucas horas que temos para gozar do nosso lazer! Que raramente prioriza as crias! “Eu faço tudo por esse menino, mas ele é um ingrato!”.)

E depois, continuamos aceitando.

O emprego mal remunerado e pouco criativo. Horas no ônibus (ou no carro, que seja! “ah, o que seria de mim sem o ar condicionado?!”). Horas realizando aquela atividade inócua, cujo produto concreto é inacessível a quem produz. “Pelo menos eu tenho um trabalho digno!”... afinal, “o trabalho dignifica o homem...” (estava faltando um clichê clássico!).

A esperança da aposentadoria mantendo o corpo em moto-contínuo. (E o que será de nós agora!? O sonho de liberdade mais distante! Muitos morrerão antes de terminarem a pena a que foram condenados! Quase cinquenta anos de trabalhos forçados sem gozar jamais dos dias de ócio prometidos aos que aceitarem a sina!)

E seguimos aceitando.

O casamento cansativo e frio. Cada um para o seu lado do sofá. Cada um para o seu lado da cama. Meias palavras. Estúpidas e cheias de desdém. Nos sagrados fins de semana, (continuamos amansados por outras versões das droguinhas infantis), homens reunidos no boteco (ou no bar), mulheres na igreja (ou no shopping). Cada grupinho munido dos melhores adjetivos para classificarem os parceiros. E em alguma ocasião “especial”, a família reunida forma as rodinhas ali mesmo, na laje, ou na varanda gourmet, sem qualquer prejuízo da conversa fiada, entremeada por gritos de... “para de correr, seu peste!!!”

E tanta aceitação precisa ter uma recompensa realmente valiosa para que o gado continue respeitando o limite da cerca, mais leve 20 vezes que o seu corpo esquecido da força que tem! E nada mais recompensante do que impor a um terceiro tudo aquilo que nos foi imposto!




Se não sofrer aprende... aprende muito, aprende mais! Por isso “esse moleque só aprende o que não presta”! Porque o que “presta” não presta pra ele, não presta pra nada que sirva no mundo concreto onde ele (e nós) vive(mos)!  Porque o que não presta é divertido e o que presta é chato e tem que ser aprendido com muita dor, com muita alienação! E eles vão seguir assim, matando aula, fazendo escondido, aprontando um monte de “arte”... até cansar de apanhar e se conformar e se tornar mais um de nós... ou... até desistir e trocar a pena da vida comum, do "trabalho digno", por uma vida menos ordinária e o risco de uma prisão menos abstrata...  

terça-feira, 18 de agosto de 2015

As difíceis nuances de uma (boa?) educação...

Alguém esqueceu um bonequinho do homem-aranha na nossa pousada e ele foi parar no baú da Pietra, com seus outros brinquedos. Um dia um amiguinho dela veio aqui e pegou o boneco emprestado. A mãe dele perguntou pra ela se era presente e ela disse que sim. Depois, ela se arrependeu, e chorou, como diante da morte, com aquela perda tão singela.

Eu tentei tantos argumentos que cansei e acabei apelando!

“Chega! Com tanta criança por aí que não tem nem o que comer direito, você não pode ficar fazendo um escândalo desses por causa de um brinquedo que você nem usava!”

Demorou um tempo pra ela voltar no assunto, no meio de outra conversa.

“Mãe, tem criança que até morre de fome?”

“Olha, filha, no nosso país isso já não acontece muito... mas muitas crianças ainda não podem comer uma comida de qualidade todos os dias, como você pode...”

Mais um tempo depois.

“Mãe, não seria bom que as pessoas que têm comida, quando não quisessem mais comer, deixassem o resto da comida delas pra quem não tem?”

Eu pensei um pouco.

“Você gostaria de ter que comer o resto da comida das outras pessoas?”

“Se eu fosse pobre, sim!”

“Não seria melhor arrumar um jeito de não haver pessoas pobres, e todos poderem escolher o que comer?”

“Mas por que algumas pessoas são pobres?”

Mais pensamento.

“Eu acho que é porque algumas pessoas são muito ricas.”

“Elas querem ter muito dinheiro pra comprar tudo o que gostam?”

“Não, elas querem muito dinheiro pra comprar o que gostam e o que não gostam também... elas têm tanto dinheiro que compram coisas que elas nem conseguem usar, e aí algumas pessoas não têm dinheiro para comprar o que precisam!”

Mais um longo tempo.

“Mãe, eu tive uma ideia! E se a gente colocasse uma placa na nossa porta escrito assim: ‘é de graça!’? Aí as pessoas que não têm dinheiro pra comprar comida podem comer o que quiserem!”

Eu ri e fiquei sem graça.

“Mas se ninguém pagasse pela comida, como nós poderíamos comprar mais ingredientes para continuar cozinhando?”

Curto e profundo pensar.

“Já sei! A gente coloca duas placas, numa a gente coloca que é de graça para quem não tem dinheiro e na outra que quem tem dinheiro precisa pagar!”

Aos 5 anos, a minha filha deduziu o que eu demorei anos pra entender. E seria um belo final pra essa história, se eu não quisesse justificar a minha covardia.

“O problema, minha filha, é que talvez as pessoas que têm dinheiro não quisessem pagar pelas que não têm, e não dissessem que têm... como a gente ia saber quem tem e quem não tem?”

E estraguei tudo...

“Ah, mãe! A gente põe outra placa: fale a verdade, se não a gente chama a polícia!”



segunda-feira, 6 de abril de 2015

Os negros da Oscar Freire


Pessoas que manifestam atitudes politicamente corretas em redes sociais podem se tornar verdadeiros heróis do dia para a noite. 
Vivemos esse tempo em que frases prontas e atitudes mais prontas ainda definem "de que lado você está". 
E eu desconfio dos polos... prefiro considerar a esfera inteira... onde não há lados!
O ser humano é complexo e essa mania novelística de simplificar tudo de maneira maniqueísta é muito triste, e extremamente perigosa quando se manifesta de maneira fundamentalista, o que tem se tornado bem frequente com a força que a massa virtual dá para o indivíduo concreto que, antes, se inibia um pouco dos seus achismos, sem saber se encontraria algum amparo das suas ideias rasas e violentas ou se seria repudiado por todos ao manifestar sua falta de conhecimento de maneira agressiva. 
E não pense que o fundamentalismo está apenas nos conservadores, que em geral apresentam poucos argumentos e defendem uma nova inquisição por dia. Muitos liberais, gente cool e intelectualizada, podem se mostrar ainda mais violentos em sua pedância retórica, baseada em conceitos e sem qualquer questionamento. 
Lembro-me de quando uma jornalista dondoca "lôra" (nossa, quantos rótulos!), comentou em seu perfil do facebook, na época da polêmica do Mais Médicos, que as médicas cubanas tinham cara de empregadas domésticas e, em seguida, questionou se teriam mesmo cabedal para atender pessoas. Imediatamente, a pobre coitada, ignorante de tudo, recebeu uma saraivada de xingamentos, sendo que a grande parte manifestava indignação com o fato de a moça dizer que alguém tem cara de empregada doméstica, onde já viu! não existe cara de empregada doméstica! Poucos a questionaram sobre a relação entre a cara de uma pessoa e o conhecimento que ela tem. E só uns raros propuseram uma reflexão interessante: sim, os médicos cubanos tem cara de empregadas domésticas BRASILEIRAS!, porque no Brasil a grande maioria das pessoas negras ("ou quase negros de tão pobres...") não têm a menor chance de trilhar os caminhos reservados à elite para determinadas profissões (as que têm status social!) e são obrigadas a fazer o servicinho sujo e desvalorizado que os ricos (ou quase ricos de tão metidos...) não querem fazer!
(Cabe observar que tais serviços já nem são tão desvalorizados, pois é notável a melhoria da auto-estima do brasileiro das classes menos abastadas... - eu tinha escrito pobre, mas fiquei com medo da repercussão - ...nos últimos anos, o que reflete diretamente no valor das diárias das faxineiras e das empreitadas dos pedreiros; enfim, "essa gente" percebeu que sabe fazer o que ninguém quer fazer, e que portanto, numa lógica simples, pode cobrar o quanto quiser pelos seus serviços: "minha diária é R$ 180,00 doutora, é baratinho, metade do preço da sua consulta de 20 minutos, mas se a senhora não quer pagar, tudo bem, abre mão de um dia de trabalho, e lava a sua própria privada!" - fica fácil entender porque a classe média está tão irritada com a nossa política!) 
Agora, diante das manifestações de ódio dos politicamente corretos contra a pobre vendedora da Animale, na Rua Oscar Freire, que "expulsou" um menino negro, filho adotivo de um americano branco, que estava parado com o pai, na entrada da loja, estou revivendo a sensação que tive com o caso citado anteriormente. 
A pobre vendedora pensou que o menino era um vendedor de rua porque ele é negro. Será que isso é tão grave?! Quantos não pensariam o mesmo? No Brasil, mulheres negras têm cara de empregada doméstica, meninos negros têm cara de vendedores de bala no farol. A gente sabe disso e a hipocrisia só nos desvia do problema real. Se o menino negro não fosse filho do americano branco e rico, mas fosse um pobre favelado vendendo made-in-chinas na Oscar Freire, ninguém teria ficado indignado por ele ter sido expulso da frente de uma loja chique em uma rua chique de São Paulo (aliás, isso deve acontecer todos os dias, mas não há ninguém importante reclamando os direitos desses negros pobres filhos de negros pobres mesmo!)

Então, eu queria dizer ao Jonathan Duran, pai do menino que está no centro dessa polêmica, que se ele tem medo que o filho seja sumariamente executado pela polícia militar, por ser negro, caso cometa algum delito bobo na adolescência, como acontece com muitos e muitos jovens negros e pobres no nosso país, ele deveria começar a questionar as suas próprias atitudes, que legitimam a atitude da vendedora impulsiva e inexperiente (conforme satisfações dadas pela loja em resposta à indignação de todos diante do incidente) que ele criticou. 
Queria dizer a ele que não é preciso levar o filho aos Estados Unidos para que ele veja "gente marrom" (hahahahahaha! os Estados Unidos é um dos países mais racistas do mundo, onde os negros vivem em guetos isolados e alisam os cabelos para ficarem menos negros - ops, qualquer semelhança com o nosso país é mera coincidência!), basta que ele amplie os seus horizontes para além da Oscar Freire, onde o trabalho de um vendedor de rua não é digno de dividir espaço com uma calça jeans que custa mais do que um moleque ganha com os seus chig lings em um ano de trabalho. 
Talvez, quando gente rica e sem preconceitos, que não especifica preferência por cor de pele ao preencher o formulário de adoção, passar a ocupar os mesmos espaços que a grande maioria dos negros que não tiveram o privilégio de serem milagrosamente salvos de sua sina social por um generoso americano branco, as vendedoras da Oscar Freire não sejam mais orientadas a expulsar ninguém da porta das lojas onde trabalham, seja branco, negro, pobre ou rico. E nenhum policial militar se sinta previamente impune de qualquer represália ao executar sumariamente uma pessoa na rua, por achar que ela não têm importância social e, portanto, não terá a vida reclamada por nenhum americano branco, cheio de voz e apoiadores nas redes sociais!


P.S. - A minha filha, Pietra, frequentou uma escola particular do bairro que eu morava em São Paulo a partir de um ano e meio de vida. Ela não tinha colegas negros. Depois, aos três anos, ela foi para uma creche municipal, e logo nas primeiras semanas me disse: "Mãe, eu não gosto da Laís" (a Laís era a sua melhor amiga na escola...). E eu perguntei: "por que, filha?". E ela: "Porque ela tem a cara preta!". Hoje, aos cinco anos, ela continua frequentando uma escola pública, e não me lembro de ter ouvido dela, novamente, qualquer frase que denotasse uma associação entre o gostar e a cor da pele... 


https://www.facebook.com/video.php?v=918268988194516&fref=nf





terça-feira, 21 de outubro de 2014

A política nossa de cada dia...

Hoje de manhã fui escovar os dentes da Pietra e notei que a pasta de dentes estava quase acabando. Lancei: minha filha, acho que você está colocando pasta demais na escova, lá na escola, para escovar os dentes. E ela: não mãe, é que eu empresto pros meus amigos que não têm pasta. Eu tive que morder a língua para não retrucar: como assim, minha filha, dessa forma eu vou ter que comprar uma pasta por dia!

Nesse momento histórico em que o Brasil vive, quando a polarização do poder, marcada pela luta explícita entre o PT e o PSDB na disputa pela presidência nacional, evidencia a existência de duas ideologias opostas que, pela primeira vez na história do nosso país, encontram forças iguais para se emparelharem, sinto um verdadeiro orgulho ao perceber que estou conseguindo tornar naturais, para a minha filha, valores que, para mim, ainda são teóricos e que, para serem praticados, precisam ser cotidianamente forjados, com disciplina e verdadeiro desejo de mudança!

Somente após 12 anos de um governo de esquerda (sim, o PT ainda representa a esquerda no Brasil, que me perdoem os radicais esquerdistas!) começamos a sentir, verdadeiramente, as consequências de políticas públicas que, de fato, atuam sobre a mudança de um paradigma social. Enfim, saímos do mapa da fome. Enfim, milhares de brasileiros saíram da miséria absoluta. Enfim, tornou-se possível para muitos ter uma casa para morar. Enfim, a luz elétrica chegou a lugares totalmente abandonados até então. Enfim, pessoas não morrem de malária, ou doenças combatíveis com tratamentos simples, pois recebem, ao menos, um atendimento médico básico. Enfim, brasileiros que nunca imaginaram sequer terminar o ensino médio, podem se profissionalizar através das escolas técnicas e universidades que se tornaram acessíveis a eles.

E diante dessas mudanças, reais, evidencia-se, como nunca antes, as consequências ideológicas de um país cuja base formativa é a política de colonização!

Estamos sofrendo. Sem saber muito bem porquê, clamamos por mudança, sem assumir a evidência de que a mudança que queremos é o retorno ao que vivíamos antes. Não queremos continuar. Estamos com medo de seguir no caminho da igualdade. Passamos séculos sendo educados a ter coisas, garantindo a distância da miséria que, ameaçadora, nos rodeava. Acreditando que o sucesso e, consequentemente, a felicidade estava em adquirir bens privados. E ensinando os nossos filhos a conservar e multiplicar sua herança pessoal.

Somos doadores de restos. Participamos de campanhas sociais em que entregamos as roupas velhas, a comida barata, os livros que não nos interessam mais, a esmola que não nos fará falta para a manutenção e elevação do nosso padrão de vida.

Não aprendemos a compartilhar o que temos de melhor. Não queremos nos desfazer do que é nosso. Viver como os pobres, dependendo do que é público-e-inferior, ao invés de ter o privilégio da “qualidade” do que é privado. Ficamos assustados diante da possibilidade de perdermos os parâmetros de comparação que sempre nos guiaram na definição do nosso valor social e, consequentemente, na garantia da nossa auto-estima burguesa. Se não houver mais pobres (e, consequentemente, não houver mais ricos), eu não posso mais ser classe média! Quem sou eu, então?

Os argumentos de uma quase maioria que clama por “mudança” são frágeis e desesperados. Mal escondem o subtexto: “sempre foi assim, o que vamos fazer agora!?”. Me fazem pensar numa fala do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, sobre os paulistanos desejarem a revolução desde que não se mexa em nada. Mudar é difícil. E a mudança de valores sociais, arraigados de maneira ontológica no seio da sociedade, simbolizam a morte dessa sociedade. E evitar a morte é instinto de sobrevivência. Pelo menos nos animais... nos humanos, poderia ser visto como primitivismo intelectual... Afinal, já simbolizamos a morte para o renascimento em mitos muito antigos. Mas negamos a Fênix e seguimos apegados ao que sempre fomos, mesmo que não nos agrade tanto assim...

Diante de uma possível vitória de Aécio nas urnas, me resta continuar a minha luta diária, de ensinar a minha filha coisas que eu não sei. Ou, pelo menos, de evitar que ela aprenda o que me foi ensinado. Talvez não estejamos mesmo prontos. Ainda precisamos nos recolher em nossas propriedades e nos salvar da dissolução do eu que nos parece ser o compartilhamento da riqueza comum. E quem sabe um dia possamos pensar em uma disputa presidenciável em que seja possível se falar, por exemplo, em reforma (agrária, mas não só) – uma das principais bandeiras do PT em seus primórdios, que foi sendo apagada pelo marketing político, encoberta por discursos de favorecimento da economia, visando a estruturação de um país competitivo no cenário do capitalismo mundial, que seduziram o eleitorado brasileiro até que as políticas públicas de redução da pobreza começaram a se evidenciar e reacenderam uma pequena e apavorante luz do comunismo.


Por hora, ignorando Paulo Freire e a sua busca por uma educação libertadora, seguimos oprimidos e com a esperança de ascendermos a opressores. E vamos reproduzindo o sistema colonizador que nos fundou. Mas distantes das esferas da política oficial, quem sabe consigamos educar os nossos filhos para que tenham a coragem de viver a morte que repudiamos e iniciar a vida que vislumbramos, mas não fomos capazes de concretizar. 

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Imagens de um puerpério real



“Antes da família nuclear, quando vivíamos em grupos familiares maiores ou em tribos, a comunidade (de mulheres, geralmente) cuidava intensamente da nova mãe para que ela tivesse a força e o ânimo para cuidar do recém-nascido: massagens, refeições especiais, repouso e resguardo faziam parte desse rito de passagem. A mulher era, literalmente, banhada em afeto e suporte para, assim, nutrir o bebê. Hoje, mesmo com os homens muito mais envolvidos nas tarefas de cuidar, a mulher moderna tem somente uma ou duas (ou no máximo três) outras pessoas para ajudá-la: o companheiro e sua mãe e/ou sogra ou, às vezes, uma profissional contratada para ajudar (babá, enfermeira). E o problema não é só o número e sim a qualidade desse cuidado, que tende a ser pragmático, focado em tarefas relacionadas somente ao bebê. Não há muito espaço para as necessidades emocionais da mãe nessa nova configuração cultural; especialmente quando a própria mulher foge da vulnerabilidade, da incoerência, do intangível.”
Do texto “precisamos falar sobre o puerpério”, do blogue “A mãe que eu quero ser”.

Tenho encontrado muitos textos sobre o puerpério. Antes já havia lido tantos outros sobre parto.
Parece que esses são os dois momentos mais críticos da maternidade... para a mãe, é claro. Muito mais, inclusive, do que a gestação, que costuma ser considerada a etapa mais difícil e que demanda maiores cuidados, mas não é!!! (a não ser em casos excepcionais de gravidez de risco).
Acho muito bom perceber a expansão de um pensamento que valoriza o parto natural, sem intervenções médicas desnecessárias. Também acho maravilhoso perceber que muitas pessoas defendem que o pós-parto deve ser um momento de cuidados especiais com a mãe.
Porém, ao me aproximar de grupos que defendem tais ideias, percebo que, muitas vezes, o que se defende, na teoria, está longe de ser praticado.
Tenho pensado muito na frase de uma amiga que abandonou um grupo de militância do parto humanizado, cansada do quase “fundamentalismo” exercido pelas suas companheiras: “não quero mais defender as mulheres que querem um parto natural, quero lutar pelas mulheres, em geral!”.
Acho que é esse o ponto. Somos cada vez mais seres fracionados. Defensores extremos de causas e ideais restritos. E assim vamos perdendo a dimensão do todo.
Viver, hoje, é um parto (cesáreo). E a nossa sociedade é formada por mães em puerpério.
Somos cada vez mais individualistas e solitários.
Vivemos rotinas massacrantes, pré-determinadas por estruturas e sistemas que não nos agradam, somos dependentes de instituições que nos exploram e nos tornam impotentes.
Estamos todos infelizes, com dores terríveis na alma, lotando os consultórios psicológicos e postando fotos alegres nas redes sociais.
Queremos ser cuidados, queremos atenção, queremos reconhecimento, mas não estamos dispostos a cuidar, atender, reconhecer...
Criticamos os políticos, corruptos, e continuamos sonegando impostos (das maneiras mais diversas possíveis).
Falamos mal do trânsito e da poluição, mas ainda nos apinhamos nos grandes centros urbanos e não deixamos o carro na garagem (ou na concessionária) para enfrentarmos corajosamente o transporte público.
Postamos fotos elogiosas do presidente do Uruguai sentado na fila de espera de um hospital público e assinamos abaixo-assinados para que os políticos brasileiros sejam obrigados a manter seus filhos em colégios do governo, mas não abrimos mão dos nossos pomposos planos de saúde e nem sequer cogitamos a possibilidade de conhecer uma CEI ou uma EMEI no momento de iniciarmos a vida escolar de nossos rebentos.
Ficamos indignados com a forma como somos tratadas quando decidimos por um parto natural, mas esculachamos com violência a vizinha que decidiu fazer uma cesariana.
Não queremos ouvir palpites sobre as nossas escolhas na educação das crianças, mas temos todas as verdades do mundo na ponta da língua para criticar os que agem de forma diferente da nossa crença.
Não são as mães no pós-parto que ficam desamparadas e são cobradas a se mostrarem dispostas e felizes. Essa é a realidade de todos nós. Se assim não fosse, diante de um quadro social tão medonho, com crianças passando fome, mulheres grávidas fumando crack nas esquinas, orfanatos lotados, recém-nascidos encontrados em latas de lixo, famílias com 10 crianças morando em casebres em barrancos deslizantes; e também meninos e meninas das classes mais abastadas passando horas em frente à TV; ou em escolas muito pouco preocupadas com a educação de verdade, mesmo que sejam super bem estruturadas e ofereçam milhões de atividades extra-curriculares; ou ainda, em suas casas, cuidados por profissionais insatisfeitos e mal remunerados... enfim, diante dessa tragédia que se configura estaríamos menos preocupados, como sociedade, em pensar caminhos melhores para gerar filhos e mais em buscar maneiras de cuidar daqueles que já geramos.
Penso que não preciso dizer que não estou contra os que pensam estes caminhos, muito menos os que os percorrem e auxiliam, na prática, outras mulheres a os trilharem.
Apenas gostaria de encontrar sites, blogues, listas de discussão, grupos de atuação que não apenas criticassem a sociedade que não ampara o indivíduo, mas antes visassem uma sociedade verdadeiramente preocupada com o coletivo. Afinal, qual indivíduo, em especial, deve ser amparado? Quem são os indivíduos que formam esse coletivo que ampara e quem ampara tais indivíduos?  Será que a única saída para o fim do individualismo que nos agride a todos não é deixarmos de achar que nós somos os indivíduos que precisam ser amparados pelo coletivo, enquanto os outros indivíduos são egoístas e terríveis porque não NOS amparam? Afinal, me perdoem se estou sendo generalista, sites e blogues que se revoltam contra a falta de amparo às mães no puerpério, por exemplo, são escritos, frequentados, comentados e compartilhados por mães no puerpério ou que tenham recentemente saído dele, não?
Quando vamos parar de reclamar os nossos direitos individuais, quando vamos parar de falar de nós mesmos e começar a, de fato lutar pelo bem COMUM?
Que tal começarmos a pensar em caminhos reais de estímulo à adoção de crianças por todas as pessoas que puderem, e não apenas por pessoas que não possam ter filhos? – e que também não “precisam” mais adotar, pois hoje a medicina permite que as mulheres gerem por diversos caminhos artificiais, o que tantas vezes decorre em gestações de alto risco e crianças com sérios problemas de saúde... Ou criarmos redes de amamentação, em que mulheres com muito leite possam amamentar outras crianças cujas mães, por qualquer motivo, não possam amamentar, ao invés de apenas mantermos bancos de leite, frios e impessoais? – afinal, os benefícios emocionais da amamentação são tão ou mais fundamentais para o bebê do que os benefícios físicos; Ou que tal formarmos comunidades de pessoas que sejam voluntárias em auxiliar mães recém-paridas, nos cuidados com a casa, com o bebê, e principalmente em ações que a façam ter certeza de que a responsabilidade sobre aquela vida que nasce não é só dela? Ou cooperativas de mães e PAIS que se revezem em cuidar de crianças pequenas, para que todos possam atender às outras demandas da vida sem ter que recorrer a escolas? Ou grupos familiares de “motoristas” amadores que ofereçam transporte a mães e pais que não tenham carro e precisem levar os filhos a lugares de difícil acesso para receberem tratamento médico? Ou... ou... ou...
Gostaria de encontrar parceiros para ações como essas...

Eu não quero defender as mulheres, quero lutar pelo ser humano.


E não quero fazê-lo nos discursos, nos grupos de militância, nas manifestações, nas redes sociais, e sim na minha prática cotidiana.


sábado, 25 de janeiro de 2014

Puta! Preto! Mulherzinha!




Li, através do facebook, o texto do Leonardo Sakamoto: "Por que chamar alguém de gay ou lésbica ainda é uma ofensa?".

O artigo começa contando o caso de um menino que foi chamado de "Félix" (personagem do Mateus Solano na atual novela das 21h, Amor à Vida) pela professora e colegas de sala, em uma escola em Piracicaba (SP), depois debate a questão do título e finaliza com a manifestação do desejo de ver o dia em que discutir a opção sexual de alguém seja tão absurdo quanto questionar o tom do branco do olho de uma pessoa.

(achei a analogia completamente descabida, mas não é por isso que fiquei a refletir sobre o assunto... segue...).



Dia desses, minha filha de 03 anos apontou uma mulher na padaria, e feliz pela sua constatação certeira, ainda sem juízo de valores, disse, bem alto: "olha, mãe, aquela moça é gorda!!!"

Eu quase morri de vergonha e implorei para que ela não falasse das pessoas na rua, porque elas poderiam ficar chateadas!

Pietra ficou calada, com cara de quem refletia sem entender porque alguém gordo ficaria chateado em ser chamado de gordo!!!



Com o texto do Sakamoto, fiquei me perguntando se um gay se incomodaria em ser chamado de gay. Decidi que não, se isso não viesse em tom de ofensa. Talvez, alguém gordo também não ficasse chateado ao ser chamado de gordo por uma criança que não o está ofendendo, se ao redor não houvesse sempre um adulto que se constrange, ou ainda uma mãe envergonhadíssima que repreende a criança deixando claro para todos (e aos poucos para a própria criança) que se trata de algo desagradável de se dizer e que, portanto, ser gordo, é ruim!



Houve outra vez, logo que Pietra começou a falar, que pegamos um táxi e ela gritou, apontando o taxista: "ele não tem cabelo!!!". Aquilo foi tão espontâneo, que eu disse: "é filha, ele não tem!", e rimos todos, eu, ela e o taxista! Nesse momento não ensinamos Pietra que ser careca é uma coisa negativa digna de envergonhar quem o é! (O que certamente atrasou o seu processo de aprendizagem sobre conduta social, contribuindo com a ação que gerou o meu constrangimento diante da gorda da padaria!).



Mas o que me incomoda mesmo no texto do Sakamoto é que o menino chamado de gay talvez só tenha se ofendido porque não é gay, ou pelo menos porque não se reconhece como tal, e nesse sentido, penso que, tentando ser original ao abordar um assunto sobre o qual já se falou tanto, o autor do texto não se deu conta de que talvez seja sempre ofensivo chamar alguém do que não é ou não se identifica, independente do valor social positivo ou negativo que existe embutido naquela qualificação.



Pra mim, achar triste que um garoto que não se entende como gay se ofenda ao ser visto como tal pelos seus colegas de escola é tão bizarro quanto questionar que uma mulher fique irritada por ser chamada de senhor pela secretária do dentista, ou que um chinês se incomode por ser chamado de japonês pelos colegas de trabalho, ou ainda que um deficiente visual se chateie por não ter reconhecida a sua condição em um metrô lotado, tendo que permanecer em pé.

Porém, se a questão que o Sakamoto pretende discutir é o fato de "gay" ser considerado um xingamento, acho que o problema é mais amplo, e anterior: afinal, não é de se espantar que uma característica bem recentemente "aceita" seja alvo de discriminação numa sociedade em que condições há tempos (teoricamente) equalizadas continuam sendo adjetivos indesejáveis.